"Tomo o carro. Parto para férias. Não irei à aldeia senão um ou dois dias - apetece-me andar. Não tenho projectos, não procuro nada, excepto estar só, eu só, soldado à máquina, nesta pura fuga de vertigem, nesta fuga de nada, nesta quente sedução de esquecer. Estradas abertas, campos abertos, a alegria à minha volta, evidente, natural como a luz do céu. O carro gira vertiginosamente, o motor zumbe como uma obsessão, espectros de casas, gentes à beira da estrada, outros carros que se cruzam com o meu mundo reinventado a alucinação. Dos restos do que passou, dos pedaços em que me quebrei, de tudo o que bateu à minha porta, à pessoa que me habita, a memória sobe, purifica-se, aquieta-se à minha volta, penetra-me o sangue, estabelece-se em harmonia, como se fosse de manhã, como se fosse já de agora que a revivo à luza da noite".
in Aparição, Vergílio Ferreira